William Shakespear

Hamlet: Drama em cinco Actos
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O REI

Ah! por duas rasões, que provavelmente acharás sem valia, mas que a meus
olhos têem toda a gravidade. A rainha sua mãe idolatra-o, é a existencia
d'ella esse filho; eu por minha parte não sei se deva considerar isto
como virtude ou como desgraça; mas ella está tão intimamente ligada á
minha alma, qual satellite ao seu planeta, que só por ella e para ella
vivo. O outro motivo que me impede de formular contra elle uma accusação
publica, é a immensa affeição que o povo lhe consagra; affeição que
desculpa todas as suas faltas, e similhante a essas fontes que
transformam em pedra a madeira, converteria as suas cadeias em aureola
de gloria. N'estas circumstancias, pois, as minhas frechas demasiado
tenues para romperem tão forte vento, em vez de tocarem no alvo,
voltando-se, feririam só o que as despediu.

LAERTE

Assim perdi meu nobre pae, e vejo minha estremecida irmã na mais
desordenada demencia! Mas se é permittido elogiar o que já passou, ella
excedia em perfeições as creaturas da sua idade, e não me hei de eu
vingar?

O REI

Essa mágua não te perturbe o somno; não me julgues de um caracter tão
pusillanime e estulto, que um perigo, que tanto me impressionou, seja
por mim tratado de bagatella. Brevemente saberás ainda mais. Eu
estremecia o teu pae; nós somos devéras amigos, agora deves acreditar
que...

Entra um MENSAGEIRO

O REI

Que queres? que ha de novo?

O MENSAGEIRO

Senhor, cartas de Hamlet; esta para vossa magestade, est'outra para a
rainha.

O REI

De Hamlet!! quem as trouxe?

O MENSAGEIRO

Disseram-me que uns marinheiros, eu não os vi. Estas cartas foram-me
entregues por Claudio, que as recebeu do portador.

O REI (pegando na carta)

Ouvirás, Laerte, o seu conteúdo. (Ao mensageiro) Retira-te (o mensageiro
sáe) (abre a carta e lê): «_Alto e poderoso monarcha, depozeram-me em
territorio vosso, nú; ámanhã solicitarei o comparecer na vossa presença,
e então se me for permittido referir-vos-hei o que deu causa ao meu
estranho e inesperado regresso.==Hamlet_». Que significa isto? voltariam
todos, será engano, será tudo falso?

LAERTE

Conhece a sua letra?

O REI

É a letra de Hamlet. _Nú_, e n'um post-scriptum acrescenta _só_. Poderás
tu dizer-me o que tudo isto significa?

LAERTE

Nada sei responder; mas que venha. Sinto renascer a chamma no meu
coração abatido, pensando que lhe poderei dizer cara a cara: Foste tu o
assassino de meu pae.

O REI

Se assim é, Laerte, não póde nem poderia ser de outra maneira; queres tu
seguir um meu conselho?

LAERTE

Sim, comtanto que não me aconselhe a paz.

O REI

Pois que faças pazes com o teu coração é que eu quero: se é verdade que
regressou, o que indica que Hamlet recúa diante da viagem e renuncia a
ella, suggerir-lhe-hei uma aventura, cujo plano está maduro no meu
espirito, e em que não poderá deixar de succumbir, e sem que a sua morte
possa ser attribuida a pessoa alguma intencionalmente; tanto que sua
propria mãe limitar-se-ha a lastimar o occorrido, vendo só uma
fatalidade.

LAERTE

Seguirei gostosamente os seus conselhos, e ainda de melhor vontade, se
podér combinar de modo que eu seja o agente principal.

O REI

Vejo que os nossos desejos se combinam completamente. Frequentemente,
desde as tuas viagens, têem-me gabado por excederes a todos no exercicio
de uma arte. Todas as tuas qualidades reunidas excitaram em Hamlet menos
ciumes do que esta só; é comtudo talvez a menos importante.

LAERTE

E qual é essa qualidade?

O REI

Um laço de fitas no chapéu da juventude, mas um enfeite necessario;
porque não lhe fica menos bem um ornamento um pouco frivolo mesmo, do
que convem á idade madura as vestes encorpadas e serias que lhe impõem a
saude e a gravidade. Ha dois mezes esteve aqui um cavalleiro normando;
tenho visto francezes e combatido com elles, e são devéras habeis, mas a
habilidade d'esse homem parecia ter o poder da magia. Parecia arroscado
á sella, e guiava o cavallo tão prodigiosamente, que pareciam um só e o
mesmo animal intelligente. Excedeu tudo quanto se póde imaginar na arte
de cavallaria e volteio, tão perfeita era a execução.

LAERTE

Um cavalleiro normando, disse?

O REI

Um normando.

LAERTE

Então era Lamond; não póde ser outro.

O REI

Elle mesmo.

LAERTE

Bem o conheço, é a phenix, a perola da sua patria.

O REI

Fallou de ti vantajosamente, fez os maiores elogios da tua pericia no
manejo das armas, sobretudo da espada, declarando ser impossivel achar
outro igual, e jurando que os jogadores de espada francezes perderam
agilidade, posição e golpe de vista depois que comtigo se mediram. Estes
elogios que elle te dispensava, de tal modo exasperaram o ciume de
Hamlet, que anhelava só pelo teu regresso para comtigo combater, e
transformaram o ciume em furia. Tirando pois partido d'estas
circumstancias...

LAERTE

Que partido poderemos nós tirar?

O REI

Laerte, amavas tu realmente teu pae, ou não era a tua dor senão um
simulacro, toda exterior e nada interior?

LAERTE

Porque esta pergunta?

O REI

Longe de mim o pensar que não amavas teu pae; mas a affeição é um
sentimento que se gera em nós, e a experiencia de todos os dias nos faz
ver que o tempo destempera a sua vivacidade e o seu ardor. Mesmo na
chamma do amor ha ás vezes uma mancha que a amortece, e cousa alguma se
conserva permanentemente bella, porque o bom, pelo crescimento degenera
em plethora, e parece abafado pela demasiada nutrição. O que pretendemos
fazer, devemos fazel-o na occasião propria, porque a vontade tambem
muda; tantas são as suas mudanças, quantas as linguas, mãos e outros
accessorios que se cruzam no seu caminho, e então a execução não é mais
que um dever, cujo cumprimento, similhante aos demasiado frequentes
suspiros, nos magôa, alliviando-nos. Mas entremos francamente na
questão. Hamlet regressa. Que estás tu disposto a fazer, para te
mostrares digno filho de teu pae, não com palavras, mas com obras?

LAERTE

Assassinal-o-ía mesmo no templo do Senhor.

O REI

Effectivamente o assassino não recúa perante o santuario, quando
pretende saciar a vingança. Mas, querido Laerte, queres seguir o meu
conselho? Encerra-te nos teus aposentos. Hamlet, regressando, saberá da
tua estada n'estes logares; farei com que exaltem na sua presença os
teus talentos, e que encareçam os elogios mais que os francezes o
fizeram; por este meio seguir-se-hão um desafio e apostas sobre a
pericia dos contendores. Elle que está desprevenido e é generoso e de
nada desconfia, não examinará os floretes; de modo que, com alguma
habilidade da tua parte, poderás escolher um florete sem botão, e por
meio de uma bem dirigida estocada fazer-lhe pagar a morte de teu pae.

LAERTE

Como o rei disse, Laerte o fará; mesmo envenenarei a ponta do meu
florete. Comprei a um empirico uma droga mortal. Por pouco que a ponta
de um punhal esteja n'ella banhada, por leve que seja o ferimento, não
ha balsamo precioso, embora composto dos mais energicos contravenenos,
que possa salvar da morte inevitavel e rapida o ferido. Assim,
prepararei a ponta do meu florete, para que mesmo leve arranhadura lhe
seja fatal.

O REI

Tornaremos ao assumpto, e combinaremos o momento e maneira mais facil e
favoravel para a sua execução. Se tivesse que falhar este nosso plano,
mais valeria nada tentar. Mas é necessario que esta primeira combinação
se firme n'uma segunda, que a substitua, no caso da arma se quebrar no
primeiro encontro. Um momento... Vejamos. Faremos apostas importantes
sobre a respectiva pericia de ambos. Quando, no calor do combate,
estiverem afogueados e sedentos, para conseguir o intento não poupes o
teu adversario, ataca-o com vigor. Hamlet, sem duvida, pedirá uma
bebida; ser-lhe-ha então apresentada uma, de antemão preparada, e uma só
gota bastará, se a tua espada te trahir, para conseguirmos o fim
desejado. Mas silencio! Que rumor é este? (Entra a rainha.) Que ha de
novo, querida Gertrudes?

A RAINHA

Accumulam-se as desgraças, e repetem-se com assustadora rapidez. Laerte,
tua irmã suicidou-se, afogando-se.

LAERTE

Onde?

A RAINHA

Na margem da vizinha ribeira cresce um salgueiro, cuja prateada folhagem
se reflecte nas aguas crystallinas. Tua irmã approximou-se d'aquelle
sitio, sempre tecendo grinaldas de rainunculos, ortigas, malmequeres, e
d'essas flores a que os nossos pastores dão um nome bem grosseiro, mas
que as nossas castas donzellas denominam poeticamente _dedo da morte_.
Quando procurava ornar com as suas innocentes grinaldas as argenteas
frondes do salgueiro, oh! desgraça! descuidosa foi envolvida na
corrente, cercada dos ornatos que lhe serviam como de corôa virginal.
Algum tempo suspensa pelas vestes sobre a corrente, assimilhava-se á
sereia, cantando incoherentes trechos, inconsciente do proprio risco,
como se estivesse no seu nativo elemento. Mas tudo tem um fim, e em
breve, sossobrando pelo peso das encharcadas vestes, cessou de cantar, e
tornou-se cadaver levado pela corrente.

LAERTE

Oh! desgraçada! afogada!!

A RAINHA

Sim, Laerte!

LAERTE

Sequem-se as minhas lagrimas; já tiveste agua em demasia, infeliz
Ophelia! Mas porque? Mais força tem a natureza do que a vontade; todos
lhe devemos obediencia. Para que uma falsa vergonha? Rolem, pois pelas
faces lagrimas santas, e arrebatem na sua corrente a minha ultima
fraqueza. Adeus, senhor! As minhas palavras de fogo tornar-se-íam
embravecido vulcão, se as lagrimas do coração o não apagassem. (Sáe.)

O REI

Sigâmol-o, Gertrudes. Quanto me custou a serenar a sua colera! Receio
bem que estas novas desgraças lhe despertem em toda a sua plenitude a
sanha da vingança. Sigâmol-o, pois.


Fim do acto quarto




ACTO QUINTO


SCENA I

Um cemiterio

Entram DOIS COVEIROS com enxadas

PRIMEIRO COVEIRO

Dever-se-ha enterrar em chão sagrado aquelle que voluntariamente
procurou a sua salvação no suicidio?

SEGUNDO COVEIRO

Eu cá digo que sim; avia-te em cavar a cova, o magistrado viu e decidiu
que aqui fosse sepultada.

PRIMEIRO COVEIRO

Isso não póde ser, a menos que não se afogasse involuntariamente.

SEGUNDO COVEIRO

Já está reconhecido e decidido.

PRIMEIRO COVEIRO

As probabilidades todas são que pereceu _se offendendo_. Ninguem é capaz
persuadir do contrario. Vê tu como eu o provo. Se me afogar
voluntariamente existe um acto; ora, um acto subvide-se em tres ramos: a
acção, o cumprimento e a execução; ergo, afogou-se voluntariamente.

SEGUNDO COVEIRO

Assim será, mas escuta-me ao menos.

PRIMEIRO COVEIRO

Ouve-me ainda; a agua está aqui, o homem está acolá; muito bem, o homem
vae encontrar a agua e se afoga; forçosamente morre por seu motu
proprio; nota isto bem. Mas se, pelo contrario, é a agua que vem
encontrar o homem, e elle se afoga, então já não é elle que procura a
morte; ergo, aquelle que não é culpado na sua morte, não poz termo
voluntariamente á vida.

SEGUNDO COVEIRO

Mas será lei?

PRIMEIRO COVEIRO

É a lei que preside ao inquerito do magistrado.

SEGUNDO COVEIRO

Queres que te diga o que penso? Se a defunta não fosse senhora de
qualidade, de certo não a enterravam em chão sagrado.

PRIMEIRO COVEIRO

É bem verdade o que dizes; é triste que as pessoas de qualidade tenham,
a mais dos outros christãos seus iguaes, o direito de se afogarem e de
se enforcarem. Vamos sempre cavando! Não ha nobreza mais antiga que a
dos jardineiros, lavradores e coveiros; seguem a profissão de Adão!

SEGUNDO COVEIRO

Pois Adão era nobre?

PRIMEIRO COVEIRO

O primeiro que usou armas!

SEGUNDO COVEIRO

Deixa-te d'isso, não consta que as tivesse!

PRIMEIRO COVEIRO

Sempre és um pagão! como comprehendes tu então a escriptura sagrada? A
escriptura diz que Adão trabalhava o solo; como poderia elle trabalhar
sem pá ou enxada? Essas eram as suas armas. Vou fazer-te outra pergunta,
se não me responderes com acerto, não és mais que um....

SEGUNDO COVEIRO

Asno! continúa.

PRIMEIRO COVEIRO

Quem é que construiu mais solidamente que o pedreiro, carpinteiro e
constructor de navios?

SEGUNDO COVEIRO

O constructor do cadafalso, porque sobrevive a innumeros hospedes.

PRIMEIRO COVEIRO

Boa resposta, palavra de honra. Cadafalso é bem achado; mas para quem se
fez o cadafalso? para os que fazem o mal; ora, tu fizeste mal em dizer
que o cadafalso é mais solido que a igreja, logo merecias o cadafalso.
Vamos, procura e responde.

SEGUNDO COVEIRO

Agora eu! Quem é que construiu mais solidamente do que o pedreiro,
carpinteiro e constructor de navios?

PRIMEIRO COVEIRO

Dize tu primeiro, eu cá já sei.

SEGUNDO COVEIRO

Tambem eu.

PRIMEIRO COVEIRO

Vejamos.

SEGUNDO COVEIRO

Nada, não atino.

HAMLET e HORACIO apparecem ao fundo

PRIMEIRO COVEIRO

Basta de tratos ao teu cerebro; escusas de pensar mais, ficas sempre na
mesma. Quando alguma vez te fizerem essa pergunta, responde: «É o
coveiro; as moradas que construe duram até ao dia de juizo». Agora vae a
casa de Vaughan e traze-me um copo de licor.(O segundo coveiro sáe,
cantando.)

  Quando eu era mancebo e quando amava
        Tudo era para mim rapido goso,
  Sómente noite e dia andava ancioso
        Por o tempo matar que me matava.

HAMLET

Pois este homem não terá consciencia do que está fazendo, cantando
assim, quando cava uma sepultura?

HORACIO

O habito tudo póde.

HAMLET

E verdade, a mão pouco afeita ao trabalho tem o tacto mais delicado!

PRIMEIRO COVEIRO (cantando)

  Mas a idade chegou, passo furtivo
  Nas gastadoras garras me ha tomado,
  E assim, mau grado meu, me ha condemnado
  A viver entre a morte, morto-vivo. (Desenterra uma caveira.)

HAMLET (apontando para uma caveira)

Houve tempo em que esta cabeça tinha uma lingua e cantava; agora este
rustico fal-a rolar pelo solo, como se fosse a mandibula de Caim, o
primeiro homicida. O craneo que este imbecil trata com tão pouco
respeito, era talvez de algum profundo politico, que se julgava até
capaz de impor a sua opinião ao proprio Deus, não é verdade?

HORACIO

Tudo póde ser, senhor.

HAMLET

Ou talvez de algum cortezão cujo prestimo unico fosse repetir: «Deus
seja comvosco, como está, meu senhor?» É talvez o craneo do sr. fulano,
que gabava o cavallo do sr. cicrano, com a idéa que este lh'o désse, não
é verdade, Horacio?

HORACIO

Sim, meu senhor!

HAMLET

Deve assim ser! Agora pertence aos vermes; não tem nem pelle, nem
sangue, nem carne, e este coveiro fende-o com a sua enxada. Eis uma
estranha revolução, assim a comprehendessemos bem. Joga-se a bola com
esses ossos, como se nada tivessem custado a formar. Sinto estalar os
meus só pensando-o.

PRIMEIRO COVEIRO (cantando)

  Uma enxada e uma pá logo em seguida,
  Um lençol que amortalha o corpo todo,
  Um buraco depois feito no lodo,
  Eis ao que se reduz a humana vida. (Desenterra outra caveira.)

HAMLET

Eis um outro craneo; quem sabe se não seria de um jurisconsulto. Agora
acabaram as trapaças, as distincções subtis, as causas, as auctoridades
legaes e as finuras. Em vida, de certo não consentia sem um processo que
este imbecil lhe percutisse o craneo com a enxada. Porque não lhe
intenta agora uma acção por vias de facto e sevicias? Quem sabe, talvez
fosse um nedio comprador de bens immoveis, com os seus direitos, rendas,
privilegios, hypothecas e contratos. Eil-o agora elle mesmo hypothecado,
tem o privilegio commum a todos os mortaes, de ver a sua cabeça coberta
de pó e terra. Pois que! todas as acquisições tão bem garantidas, não
terão outro complemento senão assegurar-lhe um espaço apenas igual á
superficie de dois contratos de venda? Todos os seus titulos mal
caberiam n'este cofre, e comtudo é hoje a sua unica propriedade. Ah!

HORACIO

Unica, senhor!

HAMLET

Horacio, o pergaminho faz-se de pelles de carneiro, não é verdade?

HORACIO

Tambem de bezerro.

HAMLET

São pois os carneiros e bezerros que fazem fé em taes titulos. Vou
interrogar este rustico. A quem pertence essa cova?

PRIMEIRO COVEIRO

A mim!

(Cantando)

  Um buraco depois feito no lodo,
  Eis ao que se reduz a humana vida.

HAMLET

Effectivamente, creio ser tua, pois que estás dentro d'ella.

PRIMEIRO COVEIRO

O senhor está fóra, logo não é sua; mas apesar d'ella não me ser
destinada, é comtudo minha.

HAMLET

Mentes, é para um morto, e não para um vivo.

PRIMEIRO COVEIRO

Eis um desmentido prompto e que não admitte replica.

HAMLET

Para que homem cavas essa cova?

PRIMEIRO COVEIRO

Senhor, não é para um homem!

HAMLET

Para que mulher então?

PRIMEIRO COVEIRO

Nem tão pouco para uma mulher!

HAMLET

Quem será pois depositado n'esta cova?

PRIMEIRO COVEIRO

Uma pessoa que foi mulher, hoje é defunta; Deus se compadeça da sua
alma.

HAMLET

Que agudeza no seu positivismo! é preciso fallar-lhe com toda a clareza,
para não ser por elle enredado. Por Deus, Horacio, que noto ha tres
annos que o mundo se torna retrogrado, e o rustico se approxima tanto do
cortezão, que quasi se confundem. Ha quanto tempo és coveiro?

O COVEIRO

Dei-me a este officio desde o dia em que o defunto rei Hamlet venceu a
Fortimbraz.

HAMLET

Quanto tempo haverá?

O COVEIRO

Não o sabe? Pois não ha imbecil que lh'o não diga. Foi no mesmo dia em
que nasceu o joven Hamlet, aquelle que enlouqueceu, e foi mandado para
Inglaterra.

HAMLET

É isso; e porque o mandaram para Inglaterra?

O COVEIRO

Ora, porque? porque estava louco; talvez lá recupere a rasão, e se não a
recuperar, tambem não se perde muito.

HAMLET

E porque?

O COVEIRO

Não será visto aqui, e lá todos são tão loucos como elle.

HAMLET

Como enlouqueceu elle?

O COVEIRO

De um modo bem estranho, segundo dizem.

HAMLET

Mas de que modo?

O COVEIRO

É claro, perdendo a rasão.

HAMLET

E qual foi o motivo?

O COVEIRO

Um motivo dinamarquez, um motivo d'este paiz em que sou coveiro desde a
infancia, ha trinta annos.

HAMLET

Dize-me, quanto tempo póde um homem estar enterrado, antes de apodrecer?

O COVEIRO

Se não está já podre antes de morrer (porque temos n'esta epocha muito
corpo gangrenado, que mal supporta a inhumação), póde conservar-se de
oito a nove annos; um surrador conserva-se nove annos.

HAMLET

Porque mais tempo que os outros?

O COVEIRO

O exercicio da sua profissão cortiu-lhe de tal modo a pelle, que fica
impermeavel por muito tempo, e de certo sabe que a agua é o mais activo
destruidor dos cadaveres. Vê esta caveira? Ficou vinte e tres annos
debaixo da terra.

HAMLET

De quem era?

O COVEIRO

De um typo original; ora, quem lhe parece que seria?

HAMLET

Como posso eu sabel-o?

O COVEIRO

Leve-o o diabo. Lembro-me ainda do dia em que me vasou sobre a cabeça um
frasco de vinho do Rheno. Esta caveira, senhor, era de Yorick, o bobo do
rei.

HAMLET

Este craneo?

O COVEIRO

Sim, este mesmo.

HAMLET (pegando na caveira)

Dá-m'o, deixa-me vel-o. Pobre Yorick! Conheci-o, Horacio, era uma mina
inexgotavel de ditos engraçados; tinha uma imaginação viva e fecunda!
quantas vezes me levou aos hombros! agora ao pensal-o annuvia-se-me o
coração. Aqui estavam os seus labios, em que tantos osculos depuz. Onde
estão agora os teus sarcasmos, as tuas replicas, as tuas canções, esses
rasgos de alegria, que promoviam a hilaridade de todos os convivas? Que!
pois ninguem já póde rir com as tuas facecias? Descarnadas estão as
faces. Vae, entra como agora estás, na alcova de alguma beldade da moda;
dize-lhe então que arrebique e enfeites nada lhe valem, porque um dia
será igual a ti. Fal-a rir, dizendo-lh'o. Dize-me tu, Horacio...

HORACIO

O que, meu senhor?

HAMLET

Julgas tu que Alexandre, depois de enterrado, se parecesse com Yorick?

HORACIO

De certo!

HAMLET

E que tivesse tão mau cheiro? Fóra! (Deita fóra o craneo.)

HORACIO

Sem duvida alguma, senhor.

HAMLET

A que destinos grosseiros é possivel baixarmos, Horacio? Quem sabe se,
proseguindo nas suas successivas transformações, as cinzas de Alexandre
não estão hoje empregadas em tapar um barril?

HORACIO

Seria entrar n'um exame demasiado minucioso.

HAMLET

Não concordo. Podemos seguir seriamente esse exame, e com probabilidades
de obter um resultado. Por exemplo, Alexandre está morto, Alexandre está
sepultado, Alexandre tornou-se pó; o pó é terra, da terra tira-se
argilla, e quem impede que esta argilla, ultima metamorphose de
Alexandre, seja empregada como batoque n'um barril de cerveja? O
imperial Cesar, morto, tornou-se pó, e serve talvez para vedar uma fenda
e interceptar a passagem do ar; e essa argilla, que espalhava o terror
sobre o universo, vae calafetar um muro para impedir que o vento passe.
Mas, silencio: afastemo-nos, chega o rei: (Entram processionalmente
padres, levando á mão o caixão de Ophelia; segue-se Laerte e o cortejo
funebre, mais atrás o rei, a rainha e a côrte) e tambem a rainha! toda a
côrte! A quem prestarão os ultimos deveres? De quem será este funeral
incompleto? Tudo denuncia um suicidio. Deve porém ser pessoa de
categoria! Occultemo-nos e observemos, Horacio. (Afastam-se um pouco
Hamlet e Horacio.)

LAERTE

Que ceremonias falta cumprir?

HAMLET

Olha, é Laerte, um nobre mancebo.

LAERTE

Ha mais alguma cousa que fazer?

PRIMEIRO PADRE

Fizemos já para o seu funeral tudo quanto nos era licito fazer; a sua
morte tinha um caracter suspeito, e se ordens superiores não tivessem
imposto silencio aos canones da Igreja, teria sido sepultada em chão
profano, onde teria ficado até que a acordasse o clarim do juizo final.
Em vez de orar por ella, teriamos lançado sobre o seu corpo tições,
entulho e pedras; e comtudo coroaram-n'a como virgem, e flores cobriram
a sua campa, e o tanger do bronze sagrado acompanhou-a á sua ultima
morada.

LAERTE

Então nada mais se póde fazer?

PRIMEIRO PADRE

Mais nada; profanariamos o rito sagrado se entoassemos um _requiem_, ou
se implorassemos para ella o repouso destinado ás almas que voaram ao
céu santamente.

LAERTE

Seja pois o seu corpo depositado na campa, e possam d'elle e da sua
carne, pura e sem manha, desabrochar violetas! Sou eu que t'o digo,
padre sem alma, minha irmã gosará no céu a bemaventurança eterna,
emquanto que tu extorcer-te-has no inferno nas convulsões do supplicio
dos condemnados.

HAMLET

Que? É pois a bella Ophelia?

A RAINHA (lançando flores sobre a campa)

Flores para esta joven flor. Adeus! Esperava ver-te esposa do meu
Hamlet; contava, encantadora donzella, enfeitar o teu leito nupcial;
nunca pensei espargir flores sobre a tua sepultura.

LAERTE

Oh! que uma triplice e dez vezes triplice maldição cáia sobre a cabeça
do scelerado que commetteu tão negra acção, e provocou a perda da sua
rasão. Esperem que, antes que a terra a cubra, a estreite mais uma vez
nos meus braços (salta para dentro da cova). Agora enterrem
conjunctamente vivos e mortos, elevem sobre nós uma montanha que exceda
em altura o antigo Pélion, ou o azulado Olympo, cujo cimo vem beijar as
nuvens.

HAMLET (adiantando-se)

Quem é que na sua dor se exprime com tanta emphase; cuja voz detem os
astros no seu giro, attonitos de o ouvirem? Sou Hamlet, o dinamarquez!
(Arremessa-se á cova.)

LAERTE (lançando-se a elle)

O inferno se apodere da tua alma!

HAMLET

É um abominavel desejo: larga-me a garganta, retira as mãos, abaixo,
aconselho-t'o eu; não sou nem mau, nem arrebatado, mas é perigoso
excitar-me, e obrarás assisadamente pensando assim. Abaixo as mãos!

O REI

Separem-os.

A RAINHA

Hamlet! Hamlet!

TODOS

Senhores!

HORACIO

Contenham-se.

HAMLET

Por um tal motivo sinto-me capaz de combater com elle até ao ultimo
alento.

A RAINHA

Meu filho, qual é o motivo?

HAMLET

Amava Ophelia, e as affeições juntas de quarenta mil irmãos não poderiam
igualar a minha; (a Laerte) e que serias tu capaz de fazer por ella?

O REI

Deixa-o, Laerte, está louco.

A RAINHA

Pelo amor de Deus, não faça caso das suas palavras.

HAMLET

Vamos, dize-me, que tencionas tu fazer? Prantear, combater, jejuar,
rasgar tuas proprias carnes, beber o Issel todo, devorar um crocodilo?
Tudo farei. Vieste aqui para te lamentar, para me desafiar,
precipitando-te dentro da sua cova; enterra-te vivo com ella, outro
tanto farei; e já que fallaste em montanhas, accumulem ellas sobre nós
tanta terra, que o cume da nossa pyramide tumular toque a zona ardente,
e ao pé d'ella o monte Ossa não pareça mais que uma verruga. Pódes
encolerisar-te, que não me assustam os teus furores.

A RAINHA

É um accesso de loucura que durará algum tempo; depois, similhante á
meiga pomba acalentando os filhinhos, ficará silencioso e immovel.

HAMLET (a Laerte)

Dize-me, porque me tratas assim? Sempre fui teu amigo. Mas não importa.
Aindaque Hercules se oppozesse, se o gato miasse, o cão havia de ladrar
(afasta-se).

O REI

Siga-o, peço-lhe, meu caro Horacio. (Horacio segue Hamlet) (a Laerte)
Tem paciencia, lembra-te da nossa conversação de hontem, (Á rainha)
Querida Gertrudes, faça com que velem sobre Hamlet; (á parte) é preciso
dar como monumento a este tumulo uma victima humana. Cedo estarei
descansado; até então, paciencia! (Sáem todos.)


SCENA II

Uma sala no castello

Entram HAMLET e HORACIO

HAMLET

Basta sobre esse assumpto; passemos ao outro, recordas-te bem de todas
as circumstancias?

HORACIO

Se me lembro, meu senhor!

HAMLET

Uma especie de lucta apoderára-se do meu coração, vedava-me o somno,
sentia-me peior que um facinora acorrentado! Adoptando comtudo uma
resolução temeraria, achei na temeridade a minha força; lembremo-nos
sempre, Horacio, que a imprudencia é muitas vezes o nosso prestante
auxiliar, quando os nossos mais profundos calculos são impotentes, e
isto deve-nos ensinar que ha uma Providencia que aperfeiçoa e completa
os projectos que imperfeitamente esboçâmos.

HORACIO

Não ha cousa mais certa!

HAMLET

Saí pois do meu camarote a bordo, e coberto com as roupas de viagem
procurei e encontrei pelo tacto, ás escuras, a sua mala; abri-a e
revolvi-a toda, em seguida recolhi-me ao meu aposento; então o perigo
baniu todo o escrupulo, abri o despacho rompendo o sêllo real! Escuta o
que li, Horacio. Oh! perfidia real! Apoiando-se em differentes motivos,
a salvação da Dinamarca e da Inglaterra, e o perigo que para elle havia
em eu continuar a viver, o rei ordenava expressamente, que depois da
leitura d'essa carta, sem demora alguma, nem mesmo a necessaria para
afiar o cutello, eu fosse decapitado.

HORACIO

Será possivel?

HAMLET

Aqui tens a carta, lê-a á tua vontade. Mas queres tu saber o que eu
então fiz?

HORACIO

Diga, senhor; que foi?

HAMLET

Para saír salvo dos laços d'esta infame traição, appellei para a minha
intelligencia, e depressa formei o meu plano. Sentei-me, e redigi um
despacho com a melhor letra que pude fazer. Antigamente, assim como os
nossos homens d'estado considerava uma vergonha ter boa letra; e se
soubesses quanto eu desejei perdel-a! mas n'esta occasião foi-me
maravilhosamente util. Queres saber o que escrevi?

HORACIO

Com todo o gosto, senhor.

HAMLET

Dirigindo-se ao monarcha inglez como seu fiel tributario, dizia-lhe o
rei de Dinamarca, se queria que se conservasse virente a palma da
amisade, a paz se coroasse de espigas e se estreitassem os laços de uma
união duradoura, lhe ordenava que, finda a leitura da sua carta, sem
outro exame, sem lhes dar tempo de se confessarem, fizesse suppliciar os
portadores do despacho.

HORACIO

Mas com que sêllo fechou esse escripto?

HAMLET

A Providencia não me desamparou ainda n'essa occasião; tinha na minha
bolsa o sêllo de meu pae, reproducção exacta do sêllo do estado. Dobrei
pois o meu despacho na fórma do estylo, subscriptei-o e sellei-o, depois
colloquei-o no logar em que estava o outro: o engano não foi descoberto.
No dia seguinte, em vez de combate sabes o que houve.

HORACIO

Assim, Rosencrantz e Guildenstern, vão receber o seu justo castigo?

HAMLET

Procuraram-n'o por suas proprias mãos; não me peza na consciencia. Só de
si se podem queixar. É sempre uma desgraça para vis subalternos
acharem-se envolvidos nas contendas de dois poderosos adversarios.

HORACIO

E é rei? meu Deus!

HAMLET

O meu dever está agora claramente indicado. Áquelle que assassinou meu
pae, deshonrou minha mãe, que se interpoz entre a escolha da nação e as
minhas esperanças, que attentou contra a minha vida traiçoeira e
perfidamente, é justiça que o meu braço o puna. E não seria um crime
digno da condemnação eterna, deixar continuar esta ulcera no seu
trabalho corrosivo?

HORACIO

Mas dentro em pouco saberá de Inglaterra o desenlace de todo este
negocio?

HAMLET

Em breve o saberá, é verdade, mas o tempo que até então decorrer,
pertence-me, e o fio da vida do homem corta-se em menos tempo do que o
preciso para contar até dois. O que me peza, meu caro Horacio, é ter
desattendido Laerte, porque eu tambem sinto o que elle deve sentir.
Sempre prezei a sua estima; mas a emphatica exaltação da sua dor
exacerbou-me.

HORACIO

Silencio, principe; approxima-se alguem.

Entra OSRICO

OSRICO

Alegro-me, principe, que tenha regressado á Dinamarca.

HAMLET

Obrigado, senhor. (A Horacio) Conheces tu esse insecto?

HORACIO

Não, meu senhor.

HAMLET

És pois um homem moral, é um vicio conhecel-o. É verdade que possue
muitas e ferteis propriedades, mas é um estupido animal, que tem mando
sobre os outros, seguro de achar a sua mangedoura na mesa real; é um
ente desprezivel, mas, como disse, é senhor de vastos dominios.

OSRICO

Meu bom senhor, se não incommodo vossa alteza, alguma cousa tinha que
lhe communicar da parte de sua magestade.

HAMLET

Escutal-o-hei com prazer. Mas cubra-se já, que o chapéu foi feito para
estar na cabeça.

OSRICO

Obrigado, senhor, mas faz muita calma.

HAMLET

Faz muito frio, não acha? O vento está norte.

OSRICO

Effectivamente, faz bastante frio.

HAMLET

Não sei se é effeito de uma predisposição particular, mas acho um calor
abrasador.

OSRICO

Não ha duvida, faz tanto calor, que nem posso quasi respirar. Mas, meu
senhor, sua magestade encarregou-me de lhe dizer que fez uma aposta
consideravel, de que vossa alteza é o motivo.

HAMLET (fazendo-lhe signal de se cobrir)

Faz favor.

OSRICO

Perdão, senhor, mas não me incommoda. Vossa alteza de certo é sabedor
que chegou a esta côrte Laerte, um joven mui dextro, dotado das mais
raras qualidades, agradavel no trato, um perfeito moço. Para fallar
d'elle como merece, póde-se dizer que é o espelho e o almanach do bom
tom, porque n'elle estão reunidas todas as qualidades que deve possuir
um perfeito cavalheiro.

HAMLET

Senhor, não encareceu o retrato que d'elle fez; não é sufficiente toda a
arithmetica da memoria para redigir o inventario especificado de todas
as suas perfeições, e ainda assim o juizo ficaria áquem da verdade.
Fallando conscienciosamente, tenho-o na conta de um cavalheiro distincto
e de raro merecimento; digo-o sinceramente; para achar outro igual,
forçoso é que se olhe no seu espelho: os outros não seriam senão a sua
sombra.

OSRICO

O principe falla d'elle com a convicção da estima.

HAMLET

De que se trata, pois? Escusâmos embaçar as suas qualidades com o nosso
juizo.

OSRICO

Senhor!

HORACIO

Não seria possivel fallar uma lingua mais intelligivel? É-o por certo,
senhor.

HAMLET

Com que fim pronunciou o nome d'aquelle cavalheiro?

OSRICO

De Laerte?

HORACIO

Acabou-se-lhe o cabedal; ignora completamente o que ha de responder.

HAMLET

É verdade.

OSRICO

Sei que não ignora...

HAMLET

Queria que assim pensasse a meu respeito; e se assim fosse, fraco elogio
para mim seria. Continue agora.

OSRICO

Vossa alteza não ignora a superioridade de Laerte?

HAMLET

É o que não affirmo, com o receio de me comparar a elle. Para conhecer
um homem a fundo era necessario vestir a sua pelle.

OSRICO

Quero fallar da sua superioridade em manejar as armas; gosa da reputação
de não ter rival.

HAMLET

Quaes são as suas armas de predilecção?

OSRICO

Florete e adaga.

HAMLET

São só duas! prosiga.

OSRICO

O rei apostou seis bellos cavallos da melhor raça, contra seis espadas e
seis adagas francezas de Laerte, sem contar os cinturões, talabartes e
tudo o mais. Tres dos accessorios sobretudo são dignos da aposta e de um
trabalho maravilhoso, no estylo mesmo das armas.

HAMLET

Que chama accessorios?

HORACIO

Bem sabia eu que antes de terminar era infallivel algum reparo do
principe.

OSRICO

Os accessorios, senhor, são os enfeites dos cintos e talabartes em que
se suspendem as espadas.

HAMLET

A expressão seria mais exacta se em vez de espada usassemos um canhão;
sirvamo-nos pois do termo cinto na generalidade. Prosiga. Seis bellos
cavallos contra seis espadas e seus pertences, incluindo tres cintos,
obra prima da arte franceza; é pois a França contra a Dinamarca. Mas
qual é o motivo d'esta aposta?

OSRICO

O rei apostou que em doze golpes, Laerte não tocaria o principe senão
tres vezes. Laerte apostou que seriam nove em doze. A questão será
promptamente decidida se vossa alteza se dignar responder.

HAMLET

E se eu responder negativamente?

OSRICO

Quer dizer, se o principe convier em combater.

HAMLET

Senhor, vou agora passeiar n'esta sala; costumo todos os dias a esta
hora, entregar-me a esses exercicios: depois estou ás ordens do rei.
Tragam floretes com a annuencia de Laerte; e se o rei persistir no seu
empenho far-lhe-hei ganhar a aposta se podér; no caso contrario
restam-me os golpes recebidos e a vergonha.

OSRICO

Deverei dar ao rei a sua resposta?

HAMLET

Disse-lhe o meu pensamento: o seu talento saberá completar a resposta.

OSRICO

Um servo dedicado de vossa alteza. (Sáe.)

HAMLET

Muito agradecido, obrigado (a Horacio); fez bem de o dizer elle mesmo,
ninguem se encarregava por certo de tal missão.

HORACIO

Finalmente, estamos sós!

HAMLET

Estou certo que ao collo da ama, antes de o sugar, elogiava a alvura do
seu seio; similhante a tantas pessoas da sua tempera, que são o encanto
dos ignorantes, abraçam as modas do dia, e revestem-se de um falso
verniz de polidez, e, graças a essa mascara, são escutados pelos
sensatos; mas experimentem-os, são como bolas de sabão, que se
desvanecem ao menor sopro.

Entra UM SENHOR

O SENHOR

Senhor! o rei mandou o joven Osrico cumprimentar vossa alteza da sua
parte, o qual lhe disse que o principe esperava n'esta sala. El-rei
envia-me para saber se é intenção de vossa alteza combater já, ou adiar
o combate.

HAMLET

Tomei já a minha resolução, e concorda com os desejos de sua magestade.
Se Laerte está prompto, tambem eu o estou; immediatamente, ou quando
quizer, comtanto que me sinta sempre tão bem disposto como agora o
estou.

O SENHOR

Em breve chegarão o rei e a rainha, e toda a côrte.

HAMLET

Bemvindos sejam!

O SENHOR

É pedido da rainha que receba cordialmente Laerte, antes de dar
principio á contenda.

HAMLET

É justo o seu conselho. (O senhor sáe.)

HORACIO

Receio que o principe perca a aposta.

HAMLET

Não creias tal; depois que elle partiu, tenho-me continuamente
exercitado no jogo das armas: com a vantagem concedida a victoria é
certa. Se tu soubesse que dor sinto no coração! Não importa.

HORACIO

Comtudo, senhor!

HAMLET

É uma loucura, uma leve apprehensão, que apenas poderia influenciar uma
fraca mulher.

HORACIO

Se sente alguma repugnancia no seu espirito, obedeça-lhe. Vou
prevenil-os que não venham, que o principe se sente indisposto.

HAMLET

De modo nenhum! Luctarei com os meus presentimentos; a Providencia tem
já escripto o meu destino. Se tenho de morrer, nada o evitará, forçoso é
obedecer aos seus decretos; que seja hoje ou ámanhã, estou prompto;
tenho dito. Poisque o homem não é senhor do seu destino, que importa que
seja mais tarde ou mais cedo? Será o que Deus quizer.

Entram o REI, a RAINHA, LAERTE, OSRICO, SENHORES e CREADOS trazendo
floretes e luvas e uma mesa com frascos e taças

HAMLET (a Laerte)

Perdoe-me, se o offendi, mas perdoe-me como cavalheiro. Os que nos
cercam, sabem-o, e creio que tambem deve saber, que um terrivel
desvairamento se apossou de mim. Se alguma cousa fiz que podesse irritar
o seu caracter e a sua honra e melindre, proclamo-o bem alto: «Loucura!»
Seria ainda Hamlet que offendeu Laerte? Nunca, nunca poderia ser Hamlet.
Então não era elle, e não sendo elle, como offenderia Hamlet a Laerte? É
claro, não era elle; renego todos esses actos. Quem foi então? a
loucura. Sendo assim, Hamlet abraça o offendido; o verdadeiro inimigo do
desditoso Hamlet é a sua loucura. Senhor, depois d'esta confissão, em
que perante todos renego toda a má intenção, poderá ainda a sua
generosidade condemnar-me? É como se inconscientemente despedisse por
cima de uma casa um dardo, e fosse ferir um irmão.

LAERTE

Meu coração está satisfeito; era elle que mais me excitava á vingança;
mas no campo da honra recuso-me a toda a conciliação, até que arbitros
mais idosos e de provada lealdade, me imponham, fundados em precedentes,
uma sentença de paz, que ponha o meu nome ao abrigo de toda a suspeita.
Até então acceito a amisade que me offerece, e nada farei em seu
detrimento.

HAMLET

Acceito francamente essa promessa, e a lucta fraternal que vamos
encetar. Venham os floretes, comecemos.

LAERTE

Dêem-me um florete!

HAMLET

Vou ser o seu alvo, Laerte; ao pé da minha inexperiencia vae sobresaír a
sua pericia, como um astro brilhante em noite escura.

LAERTE

Zomba de mim?

HAMLET

Juro que não!

O REI

Dá-lhes floretes, Osrico, Primo Hamlet, conheces a aposta?

HAMLET

Perfeitamente, senhor; aposta demasiado vantajosa para o mais fraco.

O REI

Nada receio; já os conheço ambos, e poisque Hamlet é quem mais
avantajado está, a sorte está pelo nosso lado.

LAERTE (examinando um florete)

Este não, que é muito pesado; outro!

HAMLET

Este convem-me; os floretes são todos iguaes, não é verdade?

OSRICO

Sim, meu bom senhor. (Collocam-se.)

O REI

Ponham os frascos sobre a mesa. Se Hamlet o tocar a primeira e segunda
vez, ou se elle aparar o terceiro golpe, que as baterias rompam uma
salva geral; beberei á saude de Hamlet, e lançarei na taça uma perola
mais preciosa que as que usavam nos seus diademas os quatro reis meus
predecessores. Venham as taças. Que os timbales annunciem aos clarins,
os clarins aos canhões, os canhões aos céus, os céus á terra que o rei
brinda por Hamlet. Vamos, senhores, podem começar, e vós juizes,
attenção!

HAMLET

Em guarda!

LAERTE

Em guarda, principe! (Começam.)

HAMLET

Uma!

LAERTE

Não tocou.

HAMLET

Os juizes que decidam!

OSRICO

Tocou, não ha duvida.

LAERTE

Recomecemos.

O REI

Esperem, encham as taças. Hamlet, dou-te esta perola, brindo por ti.
Offereçam-lhe a taça. (Clarins e salvas.)

HAMLET

Prefiro acabar a contenda, esperem; depois beberei. Vamos, Laerte. Uma!
que diz agora?

LAERTE

Fui tocado, confesso-o.

O REI

Hamlet ganha.

A RAINHA

Estás fatigado, falta-te o fôlego. Limpa a fronte com o meu lenço. A
rainha bebe á tua victoria, Hamlet.

HAMLET

Minha senhora!

O REI

Não bebas, Gertrudes.

A RAINHA

Bebo, senhor, desculpe-me, desejo-o.

O REI (á parte)

Era a taça envenenada, já não ha remedio.

HAMLET

Ainda não bebo, mais tarde, senhora.

A RAINHA

Deixa-me limpar tua fronte, filho!

LAERTE (ao rei, á parte)

Senhor, agora verá.

O REI

Já não creio.

LAERTE (á parte)

E, comtudo, diz-me a consciencia que não.

HAMLET

Vamos, Laerte, a terceira prova; não me poupe, peço-lh'o; desenvolva
toda a sua pericia, não me trate como creança.

LAERTE

Que diz? em guarda, pois.

OSRICO

Ainda nada.

LAERTE

Agora toquei. (No encarniçado da lucta trocam os floretes, e Hamlet é
ferido e fere Laerte.)

O REI

Separem-nos, estão desesperados.

HAMLET

Não, recomecemos. (A rainha cáe)

OSRICO

Acudam á rainha; acudam!

HORACIO

Feridos ambos!! que é isto, senhor?

OSRICO

Como está Laerte?

LAERTE

Colhido no meu proprio laço, morro pela minha traição.

HAMLET

Que tem a rainha?

O REI

Desmaiou á vista do sangue.

A RAINHA

Não, não! a bebida, a bebida! meu Hamlet, a bebida! a bebida!
envenenada... (Morre.)

HAMLET

Oh! infamia! fechem as portas, traição! quero conhecel-a.

LAERTE

Eu t'o digo, é esta: Hamlet, morres assassinado, nada te póde salvar;
meia hora, quando muito, te resta de vida, na tua mão ainda conservas a
arma da traição afiada e envenenada; tambem sou victima da minha
perfidia. Escuta, já sinto a morte, tua mãe envenenada... morro, Hamlet!
o rei... só o rei culpado... (Desfallecendo.)

HAMLET

A ponta envenenada! veneno, cumpre o teu dever. (Fere o rei.)

OSRICO e SENHOR

Traição! traição!

O REI

Defendam-me, é apenas leve ferimento.

HAMLET

Bebe os restos d'esta taça, incestuoso assassino, damnado dinamarquez.
Procura a perola, achal-a-has seguindo minha mãe. (Vasa á força o resto
da taça pela bôca do rei, que cáe e morre.)

LAERTE (n'um ultimo alento de vida)

É justo o castigo; morre pelo veneno que preparáras. Hamlet,
perdoemo-nos mutuamente, e livres de qualquer reciproco remorso subam
nossas almas abraçadas ao céu. (Morre.)

HAMLET

Absolva-te o céu, como eu te perdôo; sigo-te, Laerte (a Horacio) morro,
Horacio. Rainha desgraçada, adeus. A vós todos, que ao ver esta
catastrophe empallideceis, mudos espectadores d'este drama, se tivesse
tempo ainda, se esta ancia terrivel não m'o vedasse, poderia dizer...
agora, resignação. Eu morro, Horacio, tu viverás, justifica-me, explica
o meu odio aos que o ignoram.

HORACIO

Isso nunca! sou mais romano que dinamarquez, e n'esta taça ainda ha
liquido.

HAMLET

Se és homem, dá-m'a; larga-a, por Deus, quero-a. Vive para revelar um
tão infame crime. Se alguma vez foste meu amigo, não apresses a tua
felicidade celeste e permanece n'este mundo odioso, conta a minha
historia. (Ouve-se uma marcha) Que rumor marcial é este?

HORACIO

É o jovem Fortimbraz, que regressa victorioso da Polonia, e que saúda os
embaixadores de Inglaterra com esta salva guerreira. (Ouvem-se tiros.)

HAMLET

Morro, Horacio, triumpha o veneno poderoso; nem já as noticias de
Inglaterra me é dado saber, mas predigo que Fortimbraz ha de reinar;
morrendo, voto por elle; conta-lhe mais ou menos os pormenores da causa
da minha morte. O resto... é... silencio... (Morre)

HORACIO

Que nobre alma! Adeus, meu adorado principe, os anjos do céu o embalem
com os seus canticos divinos. Mas porque é esta marcha? (Ouve-se uma
marcha militar.)

Entram FORTIMBRAZ, os EMBAIXADORES a outras pessoas

FORTIMBRAZ

Que vejo?

HORACIO

Vae sabel-o. Desgraça ou prodigio, está patente a seus olhos.

FORTIMBRAZ

Que hecatombe, que horror! Oh! morte, que festim cruento preparavas tu,
para precisar de uma só vez tanto sangue real?

PRIMEIRO EMBAIXADOR

Que horrivel espectaculo! tarde chegâmos de Inglaterra. Já não nos póde
ouvir aquelle de cujas ordens annunciavamos o cumprimento, trazendo a
nova da execução de Rosencrantz e Guildenstern. Quem nol-o agradecerá
agora?

HORACIO

Elle não, que os seus labios agora gelidos nunca o ordenaram. Mas,
poisque vindes de Inglaterra e de Polonia e presenceaes esta crise
sangrenta, ordenae que bem alto, á vista de todos, sejam collocados
estes corpos, e eu lhes direi a causa d'estes factos, poisque a ignoram.
Então soarão aos seus ouvidos actos carnaes, incestos, sangue,
expiações, assassinios fortuitos, mortes causadas pela perfidia ou por
força maior, e para desfecho traições que feriram os proprios auctores;
eis a minha narração, e juro que é verdade.

FORTIMBRAZ

Ouçâmol-o promptamente, convoquemos os nobres: dolorosamente acceito o
meu novo encargo, pois tenho sobre este reino direitos incontestaveis,
que é meu dever reivindicar.

HORACIO

Missão tenho de lhe fallar a esse respeito, da parte d'aquelle que vivo
teria tido os suffragios do povo. Seja pois rapida a decisão, antes que
os espiritos preplexos sejam dominados por alguma conspiração ou engano
que causem novas desgraças.

FORTIMBRAZ

Sejam por quatro capitães levados os restos mortaes de Hamlet:
façam-se-lhe todas as honras militares. Se vivesse teria sido um grande
rei. Quando passar, salvem os canhões. Levem os cadaveres, esta vista é
só propria dos campos de batalha; aqui causa horror! Executem as minhas
ordens, rompam as salvas de canhões e as descargas de fuzilaria, e as
marchas funebres. Morreu o que havia de ser rei de Dinamarca. (Desfilam
todos com os cadaveres: ouvem-se salvas de artilheria, descargas de
fuzilaria e marchas funebres. Cae o panno.)


Fim do quinto e ultimo acto
                
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